Por Marco Antonio Innocenti
O Estado brasileiro é pródigo na
cobrança das obrigações do cidadão. Esse rigor, contudo, inclusive na exigência
de exorbitantes multas por atraso, não existe quanto às obrigações do Poder
Público para com o particular. O exemplo mais gritante dessa cultura nacional
está nos precatórios: as dívidas que municípios, estados e a União fazem de
tudo para não pagar.
No último dia 25, o Plenário do Supremo Tribunal Federal colocou um
ponto final na farra do descumprimento dos débitos judiciais, cujo atraso vem
aumentando progressivamente, na mesma proporção do valor global da dívida. Nos
últimos 26 anos, o Estado decretou, unilateralmente, sucessivas moratórias no
pagamento de precatórios. A primeira estabelecida pelo constituinte da Carta de
1988 (ADCT, artigo 33) e a última promulgada por meio da Emenda Constitucional
62 de 2009 (ADCT, artigo 97).
Ao concluir o julgamento da modulação dos efeitos da decisão proferida
nas ADIs 4.357 e 4.425, que praticamente aniquilou a chamada “Emenda do
Calote”, o STF fixou o prazo improrrogável até 31 de dezembro de 2020, para que
todo o estoque da dívida judicial dos Estados e dos Municípios, incluindo os
novos precatórios a serem expedidos até o final desse prazo, seja
irremediavelmente quitado.
A partir dessa data, nenhum ente público poderá encontrar-se em mora no
cumprimento dessas dívidas, que voltarão a ser pagas, a partir de janeiro de
2021, de acordo com o regime geral previsto no artigo 100 da Constituição da
República, ou seja, dentro do exercício financeiro seguinte àquele em que tiver
sido expedida a ordem de pagamento pelo Judiciário.
Além do seu caráter preventivo em relação a outras eventuais moratórias,
essa decisão é também dotada de um forte conteúdo pragmático. Os esforços
empregados pelos ministros da Suprema Corte para obtenção, entre si, de um
amplo consenso no Plenário em torno de uma única proposta de modulação, fruto de
vários ajustes recíprocos nos respectivos votos, revelam muito mais que uma
preocupação institucional. Mostram acima de tudo compromisso com a sociedade de
não mais tolerar, de agora em diante, as conhecidas justificativas,
frequentemente apresentadas pelos gestores públicos para deixar de honrar os
precatórios.
É claro que esse compromisso não foi firmado sem qualquer vantagem para
os Estados e Municípios. Muito pelo contrário. Ao modular a decisão que havia
proferido em 14 de março de 2013, o STF acabou perdoando a diferença da
correção monetária entre julho de 2009 até o dia 25 de março de 2015, período
no qual o Índice de Preços ao Consumidor Amplo — Série Especial (IPCA-E) variou
37,91%, enquanto a Taxa Referencial (TR), empregada na atualização dos precatórios
no mesmo período e julgada inconstitucional pelo próprio STF, variou apenas
3,57%.
Só esse desconto compulsório imposto pelo STF sobre o patrimônio dos
credores conferiu uma redução do montante global da dívida de mais de R$ 35
bilhões, mantendo-a nos atuais R$ 97 bilhões, segundo última apuração do
Conselho Nacional de Justiça.
Além desse desconto, o STF ainda permitiu que metade das
disponibilizações orçamentárias para pagamento de precatórios possa ser
utilizada pelas entidades devedoras para quitação dos débitos por meio de
acordos diretamente celebrados com os credores, com deságio de até 40% do valor
dos créditos, o que, na prática, permitirá aos devedores abater mais 20% do
valor total do estoque.
Esses enormes descontos, entretanto, embora evidentemente prejudiciais
aos credores, legitimam o compromisso do STF de tratar o assunto daqui por
diante com tolerância zero. Fixou-se que os devedores têm que equacionar seus
orçamentos já a partir de janeiro de 2016, para aumentar, tanto quanto necessário
for, o percentual da Receita Corrente Líquida a que alude o parágrafo 2° do
artigo 97-ADCT. As amortizações mensais devem corresponder ao volume de
recursos efetivamente compatíveis com a liquidação integral de todos os
precatórios pendentes de pagamento até o final do exercício de 2020, sob pena
de imposição coercitiva das correspondentes medidas sancionatórias. Entre elas
o sequestro das importâncias devidas.
O fato de o STF ter atribuído competência ao Conselho Nacional de
Justiça de fiscalizar o repasse dos recursos das entidades devedoras aos
tribunais de Justiça, monitorando os pagamentos e propondo medidas concretas e
necessárias para assegurar a liquidação total dos precatórios vencidos até
2020, reforça o compromisso subjacente à decisão proferida no último dia 25 de
março.
Cumpre ao STF, a partir de agora, velar fielmente pelo cumprimento de
sua própria decisão, não permitindo que em nenhuma hipótese o devedor, por mais
razoável que pareça a sua justificativa, deixe de honrar as quantias devidas
para a satisfação integral da dívida.
Afinal, os ministros da Corte Suprema não poderão se esquecer da grande
cota de sacrifícios que impuseram aos credores ao estabelecer as premissas de
sua decisão, suprimindo substancial parte de seus legítimos direitos após anos
a fio no aguardo do cumprimento de decisões passadas há décadas em julgado,
somente admitidos na expectativa de colocar um ponto final na inadimplência dos
precatórios.
Espera-se o mesmo do Supremo caso o Congresso Nacional venha novamente a
adotar legislação que altere a expectativa da sociedade de terminar a novela
dos precatórios no final de 2020. Seja impondo inconstitucionalmente novos
sacrifícios aos credores, seja buscando contornar ou mitigar a obrigação dos
entes públicos de liquidar os débitos judiciais pendentes até o final desse
prazo —, como já se ouve murmurar nos bastidores políticos.
Marco Antonio
Innocenti é presidente da Comissão de Defesa dos Credores Públicos do
Conselho Federal da OAB.
Revista Consultor Jurídico, 9 de abril de 2015, 9h43
Link: http://www.conjur.com.br/2015-abr-09/marco-innocenti-ponto-final-inadimplencia-precatorios